No dia 5 de março de 2025, Alcina Nhaume, uma costureira de 30 anos, trabalhava em seu ateliê em Maputo, concentrada em um vestido de noiva. O que ela não sabia era que a violência das manifestações pós-eleitorais em Moçambique estava prestes a mudar sua vida para sempre. Uma bala, supostamente disparada pela Unidade de Intervenção Rápida (UIR), atingiu sua mandíbula, desfigurando seu rosto e deixando sua vida em suspenso. “Quando olhei para o espelho, vi meu rosto totalmente desfigurado. Tinha perdido os dentes e o queixo parecia prestes a cair”, relatou Alcina à DW.
Alcina não estava nas ruas protestando. Ela apenas trabalhava, alheia ao caos que tomava conta de Maputo. A crise política e social, desencadeada pelas eleições de outubro de 2024, trouxe confrontos violentos entre manifestantes e forças de segurança. A repressão policial, marcada por uso excessivo de força, resultou em centenas de vítimas, incluindo Alcina. “O que me veio à cabeça foi: meu Deus, o que é isto?”, disse ela, ainda sem entender que fora atingida por uma bala até buscar ajuda e perceber a presença da polícia.
Sem socorro imediato dos agentes da UIR, que ignoraram seus apelos, Alcina dependeu da família para chegar ao Hospital Central de Maputo. Após uma cirurgia de emergência, ela passou um mês sem comer ou falar, enfrentando uma recuperação dolorosa. Hoje, sua maior esperança é conseguir tratamento no exterior para reconstrução facial, mas os custos e a burocracia tornam esse sonho distante.
Boaventura Nhaume, irmão de Alcina, descreve o trauma familiar: “Estamos abalados, chocados, e ainda tentando perceber o que aconteceu. As sequelas estão visíveis, e a ferida é muito grande.” Como costureira, Alcina sustentava a família, mas agora está internada, incapaz de trabalhar. A revolta cresce não só pela violência, mas pelo silêncio das autoridades. “Deveria haver responsabilização ou ao menos uma tentativa de apoio à família”, lamenta Boaventura.
O caso de Alcina gerou indignação em Moçambique. O Centro para Democracia e Direitos Humanos (CDD) apresentou uma queixa contra a polícia, exigindo justiça. A sociedade civil moçambicana, já cansada de episódios de brutalidade, vê na história de Alcina um símbolo da impunidade que alimenta a crise.
As manifestações em Moçambique começaram em outubro de 2024, após a vitória de Daniel Chapo, da Frelimo, nas eleições presidenciais. Acusações de fraude, lideradas pelo opositor Venâncio Mondlane, do partido PODEMOS, levaram milhares às ruas. A resposta do governo foi uma repressão violenta: mais de 361 mortos e 750 baleados, segundo a ONG Decide. A Amnistia Internacional documentou o uso de armas letais, gás lacrimogêneo e balas de borracha contra manifestantes, muitas vezes sem justificativa.
No mesmo dia em que Alcina foi baleada, o governo assinava um acordo para um “diálogo nacional inclusivo”, uma ironia que expõe a distância entre promessas políticas e a realidade nas ruas. Enquanto líderes discutiam reconciliação, a UIR abria fogo em bairros como Hulene, matando duas crianças e ferindo mais de 15 pessoas.
Em meio à dor, a história de Alcina inspirou vozes como a de Fredy Uamusse, um jovem artista moçambicano cujos desenhos sobre a violência pós-eleitoral viralizaram nas redes sociais. Seus retratos capturam a revolta e a resiliência do povo, transformando tragédias em um chamado por mudança. A “revolução” de Fredy, como ele chama, é um lembrete de que a arte pode ser uma arma poderosa contra a opressão.
Alcina Nhaume não é apenas uma vítima; é um reflexo de um Moçambique em crise, onde a busca por justiça enfrenta a muralha da impunidade. Organizações como a Amnistia Internacional e a ONU exigem investigações transparentes, mas os resultados são lentos. Enquanto isso, Alcina sonha com a reconstrução de seu rosto e de sua vida, mas depende de apoio que ainda não veio.
A história de Alcina é um apelo urgente por mudança. Como disse Ferosa Chaúque, ativista de direitos humanos: “Sem diálogo, não há reconciliação, não há responsabilização e muito menos reparação.” Moçambique precisa ouvir suas vítimas e enfrentar as feridas abertas pela violência. Só assim poderá construir um futuro mais justo.