Em um novo capítulo do escândalo financeiro que abalou Moçambique, a Justiça britânica autorizou a empresa de construção naval Privinvest a submeter um recurso contra a sentença que a obrigava a pagar uma indenização de 1,65 bilhão de euros ao país. A decisão, anunciada em abril de 2025, suspende temporariamente o pagamento que poderia aliviar as finanças moçambicanas, enquanto o caso retorna a uma nova instância judicial. Mas o que isso significa para Moçambique, e como o país pode navegar por essas águas turbulentas?
O caso das “dívidas ocultas” remonta a 2013 e 2014, quando empresas estatais moçambicanas — ProIndicus, EMATUM e MAM — contraíram empréstimos de cerca de 2 bilhões de euros junto aos bancos Credit Suisse e VTB, com garantias soberanas assinadas pelo então ministro das Finanças, Manuel Chang. O objetivo era financiar projetos de pesca de atum e segurança marítima, com equipamentos fornecidos pela Privinvest. No entanto, grande parte do dinheiro desapareceu, e a revelação das dívidas, em 2016, desencadeou uma crise econômica no país, com a suspensão de apoios do Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros doadores, além de um colapso da moeda local, o metical.
Em julho de 2024, Moçambique obteve uma vitória significativa no Tribunal Comercial de Londres, quando o juiz Robin Knowles determinou que a Privinvest, liderada pelo falecido Iskandar Safa, pagou subornos de pelo menos 7 milhões de dólares a Manuel Chang para garantir os contratos. A sentença obrigava a empresa a indenizar Moçambique em aproximadamente 1,9 bilhão de dólares, incluindo juros, cobrindo perdas relacionadas aos empréstimos e obrigações financeiras até 2031.
A autorização do recurso, apresentada pela Privinvest em dezembro de 2024, baseia-se na alegação de que Moçambique não cumpriu a obrigação de divulgar documentos relevantes para o processo, incluindo informações classificadas dos serviços de inteligência do Estado (SISE). A empresa argumenta que essas omissões comprometeram a decisão judicial anterior.
Borges Nhamirre, pesquisador do Instituto de Estudos de Segurança de África, considera a decisão um revés para Moçambique, mas não uma derrota definitiva. Em entrevista à DW África, ele destacou que a suspensão da indenização atrasa o alívio financeiro que o país esperava, mas Moçambique ainda mantém uma posição vantajosa, já que venceu na primeira instância. “O tribunal de recurso não julga fatos, mas a aplicação da lei. Moçambique continua em vantagem, mas precisa colaborar plenamente com a Justiça”, afirmou Nhamirre.
A questão dos documentos classificados é um ponto delicado. Moçambique alega que esses arquivos, ligados ao SISE e ao gabinete presidencial, são protegidos por sigilo de Estado e não podem ser entregues a um tribunal estrangeiro. Segundo Nhamirre, a ocultação desses documentos não prejudicou o país na primeira instância, mas a Privinvest insiste que a falta de transparência justifica a revisão da sentença.
A recusa em divulgar esses documentos levanta perguntas: o que Moçambique está protegendo? Informações sensíveis sobre operações de inteligência ou evidências que poderiam comprometer figuras políticas de alto escalão? A falta de clareza alimenta especulações e pode enfraquecer a posição do país no tribunal de recurso.
A indenização de 1,65 bilhão de euros seria um respiro para Moçambique, um país que enfrenta desafios financeiros significativos, incluindo uma dívida pública elevada e dificuldades de acesso aos mercados internacionais. A suspensão do pagamento, conforme apontado por Nhamirre, representa uma perda imediata para os cofres do Estado. “É muito dinheiro em jogo, especialmente para um país com tantas necessidades”, observou o analista.
Além disso, uma possível reversão da sentença poderia agravar a crise econômica. A validação das dívidas ocultas por um tribunal de Londres reforçaria a credibilidade de Moçambique nos mercados financeiros, potencialmente desbloqueando novos financiamentos. Por outro lado, uma derrota poderia perpetuar o estigma do escândalo e dificultar a recuperação econômica.
Para manter a vantagem, Moçambique precisa adotar uma postura de total cooperação com a Justiça britânica. Isso inclui disponibilizar o maior número possível de documentos e garantir que cidadãos moçambicanos convocados, incluindo figuras politicamente expostas, compareçam ao tribunal para depoimentos. A Procuradoria-Geral da República (PGR) já prometeu, em 2023, trabalhar para evitar a anulação do caso por falta de provas documentais, mas a pressão agora é ainda maior.
A imunidade do presidente Filipe Nyusi, que foi nomeado como parte no processo pela Privinvest, também pode complicar as coisas. Embora Nyusi tenha sido protegido por imunidade diplomática em decisões anteriores, o fim de seu mandato pode expô-lo a ações judiciais no exterior, como sugeriu a Privinvest.
O escândalo das dívidas ocultas é mais do que uma batalha judicial — é um reflexo das fragilidades de governança e transparência em Moçambique. Enquanto o país luta para recuperar os bilhões perdidos, a saga em Londres serve como um lembrete de que a justiça, embora lenta, é implacável. Para os moçambicanos, a esperança é que a verdade prevaleça e que o país possa, finalmente, virar a página de um dos maiores escândalos financeiros de sua história.