No Brasil colonial e imperial, a Igreja Católica não apenas coexistiu com a escravidão, mas foi uma peça central na sustentação desse sistema brutal. Segundo o historiador Vitor Hugo Monteiro Franco, doutor pela UFF e autor de Escravos da Religião, “era a escravidão que sustentava a Igreja Católica no Brasil”. Suas pesquisas revelam que, no século 19, ordens religiosas como a de São Bento possuíam cerca de 4 mil pessoas escravizadas em unidades espalhadas por Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Bahia.
A Igreja justificava a escravidão com argumentos teológicos ambíguos. Para os religiosos, escravizar africanos era uma forma de “salvá-los” do paganismo, oferecendo-lhes a chance de se tornarem cristãos. “É melhor viver sob a escravidão e se tornar um cristão do que seguir no paganismo e ir para o inferno”, era o discurso comum, como explica Franco em entrevista à BBC News Brasil. Essa retórica servia como um salvo-conduto para a elite escravocrata, que explorou mão de obra compulsória por quase quatro séculos.
Mas a Igreja não se limitava a endossar o sistema. Ela própria participava ativamente. Sacerdotes estavam presentes em navios negreiros, batizando africanos antes ou durante as travessias. Além disso, ordens religiosas, como os jesuítas, lucravam diretamente com o tráfico de pessoas. Em Luanda, Angola, no século 18, a Companhia de Jesus era a maior proprietária de escravizados, com milhares de pessoas sob seu controle. Esses indivíduos eram frequentemente enviados ao Brasil, em transações que burlavam os tributos da Coroa portuguesa, como aponta Franco.
Os jesuítas, conhecidos por sua atuação missionária, também se destacavam no comércio escravista. Suas propriedades em Angola abasteciam o mercado brasileiro, com escravizados sendo transportados diretamente para colégios jesuíticos no Rio de Janeiro. “Havia um trânsito direto, feito por navios da própria ordem”, revela Franco. Esse comércio paralelo não apenas enriquecia a Companhia de Jesus, mas também alimentava o mercado escravocrata, já que muitos desses escravizados eram revendidos no Brasil.
O historiador norte-americano Dauril Alden reforça essa visão, afirmando que, no século 18, os jesuítas eram a instituição com mais escravizados em toda a América. Fazendas, engenhos e conventos mantidos por ordens religiosas, como beneditinos, carmelitas e franciscanos, dependiam intensamente do trabalho escravo para sua manutenção, produção e até serviços domésticos.
A relação da Igreja com a escravidão também se refletia nas decisões papais. Em 1435, a bula Sicut Dudum proibia a escravização de nativos convertidos das Ilhas Canárias. No entanto, em 1452, o papa Nicolau 5º, com a bula Dum Diversas, autorizou a “servidão perpétua” de pagãos, legitimando a exploração de povos não cristãos. Essa contradição marcou a Igreja por séculos, com bulas alternando entre condenações e permissões da escravidão.
No Brasil, figuras como o padre Antônio Vieira, jesuíta influente do século 17, reforçavam essa lógica. Em seus sermões, Vieira sugeria que a escravidão era um “milagre” para os africanos, pois os aproximava do cristianismo e da salvação. “Vocês vão conhecer o paraíso, mas esse paraíso vem através da escravidão”, dizia ele, segundo Franco.
Até 1889, com a Proclamação da República, a Igreja operava sob o regime do padroado, no qual a Coroa controlava suas instituições no Brasil. “A Igreja era organicamente integrada ao sistema estatal monárquico”, explica o historiador Ítalo Domingos Santirocchi, da UFMA. Essa integração dificultava posturas antiescravistas, já que o clero dependia da aceitação das elites dominantes, como destaca Renato Pinto Venancio, da UFMG.
Ainda assim, no século 19, a Igreja começou a rever suas posições. Em 1888, o papa Leão 13 condecorou a princesa Isabel pela Lei Áurea, que aboliu a escravidão. Uma encíclica enviada aos bispos brasileiros naquele ano pedia apoio à abolição, mas, como observa Venancio, essas iniciativas foram “tardias”. Durante séculos, a Igreja conviveu com a escravidão sem condená-la formalmente.
Nas últimas décadas, a Igreja Católica tem reconhecido sua cumplicidade com a escravidão. Em março de 2023, o Vaticano emitiu uma nota repudiando atos de “violência, opressão e escravidão” durante a colonização, pedindo perdão por seus erros. Embora focado nos povos indígenas, o documento reflete um esforço de reconciliação com o passado.
A história da relação entre a Igreja Católica e a escravidão no Brasil é um lembrete da complexidade das instituições humanas. Como observa o historiador Paulo Henrique Martinez, da Unesp, “as maiores concentrações de trabalho escravo estavam em conventos e instalações da Igreja”. Essa realidade, embora desconfortável, é essencial para entender como a fé foi usada para justificar a exploração e como o sistema escravocrata moldou o país.
Hoje, ao revisitar esse passado, a Igreja e a sociedade brasileira têm a chance de aprender com os erros e construir um futuro mais justo. A história, como diz Franco, não deve ser apagada, mas enfrentada com coragem e reflexão.