Nos últimos anos, o Discord, uma plataforma originalmente voltada para jogadores online, transformou-se em um espaço que preocupa autoridades e pesquisadores pelo seu papel na proliferação de crimes extremistas. De transmissões ao vivo de atos cruéis a planejamentos de ataques violentos, o aplicativo tem sido citado em investigações no Brasil e no mundo. Mas o que torna o Discord um terreno tão fértil para o extremismo?
Em uma das cenas mais chocantes relatadas pelo delegado Alesandro Barreto, coordenador do Ciberlab do Ministério da Justiça, cerca de 200 pessoas assistiam ao vivo no Discord a um homem torturando um cachorro, com as patas e o focinho amarrados. Mensagens em tempo real pediam ainda mais crueldade, até que o animal foi morto a tiros. “O cachorro gritando e todo mundo assistindo como se fosse um jogo, como se fosse para passar de fase”, descreve Barreto.
Casos como esse não são isolados. Nos últimos meses, o Discord apareceu em investigações de grande repercussão no Brasil. Em maio de 2025, a Polícia do Rio de Janeiro desmantelou um grupo que planejava um ataque contra adolescentes e pessoas LGBTs durante o show da cantora Lady Gaga em Copacabana. Em abril, comunidades da plataforma foram investigadas por atentados contra moradores de rua em quatro estados. Em novembro de 2024, um homem conhecido como “Hitler da Bahia” foi preso por crimes digitais, incluindo estupro virtual e incentivo à automutilação, todos coordenados pelo Discord.
Dados da Safernet, ONG dedicada à defesa dos direitos humanos na internet, apontam um aumento de 172,5% nas denúncias envolvendo o Discord no primeiro trimestre de 2025, em comparação com o mesmo período de 2024. Os crimes mais denunciados incluem apologia a crimes contra a vida, homofobia e pornografia infantil.
Criado em 2015, o Discord foi projetado para ser um espaço onde jogadores pudessem compartilhar mensagens, áudios, vídeos e transmissões em tempo real. Sua estrutura, no entanto, favorece a formação de comunidades fechadas, conhecidas como “servidores” ou “panelas”, que operam com pouca visibilidade externa. Diferentemente de redes como Instagram ou TikTok, onde o conteúdo é criado para viralizar, no Discord o foco é a interação interna, entre membros de um grupo restrito.
“Você tem uma comunidade mais fechada, que cria conteúdo para si mesma, e não para se tornar famosa ou ganhar dinheiro”, explica João Victor Ferreira, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) e autor de uma dissertação premiada sobre radicalização política no Discord. Essa característica atrai grupos extremistas, que veem nesses espaços um ambiente seguro para disseminar ideias sem o risco de contraponto ou resistência, como ocorre em plataformas mais abertas.
Além disso, o Discord apresenta desafios para a moderação de conteúdo. A responsabilidade de supervisionar os servidores recai, em grande parte, sobre os próprios administradores dos canais, que muitas vezes compartilham das mesmas ideologias extremistas. “É como se desse para a raposa cuidar do galinheiro”, critica Tatiana Azevedo, pesquisadora independente que monitora movimentos extremistas online.
Nos servidores extremistas, atos de violência são frequentemente transmitidos ao vivo, acompanhados do que os membros chamam de “lulz” — uma expressão que remete a “rindo alto” (LOL) diante de crueldades. Esse comportamento reforça a normalização da violência e cria um ciclo de radicalização. “O Discord vem produzindo a coisa horrenda ao vivo e, a partir dali, contamina outras redes”, alerta Azevedo.
O acesso a esses servidores muitas vezes exige um convite, que pode ser compartilhado em outras redes sociais. Para grupos mais radicais, há processos seletivos, com entrevistas e períodos de teste, criando uma estrutura quase hierárquica. “Existe um processo de cooptação e radicalização”, explica Azevedo. A busca por novos membros começa em plataformas mais abertas, onde vídeos extremistas atraem pessoas suscetíveis, que são gradualmente levadas ao Discord para consumir conteúdos mais intensos.
Em nota à BBC News Brasil, o Discord afirmou manter uma política de “tolerância zero” para atividades ilegais e destacou sua colaboração com autoridades brasileiras, como na operação que frustrou o ataque no show de Lady Gaga. A plataforma também anunciou a criação de uma equipe dedicada ao Brasil, focada em identificar e remover conteúdos nocivos.
Apesar disso, especialistas apontam que a moderação segue insuficiente, especialmente em transmissões ao vivo, que não são armazenadas, dificultando investigações. A falta de transparência e a resistência à intervenção estatal, influenciada pela cultura gamer libertária, agravam o problema.
Na última semana, o deputado federal Guilherme Boulos (Psol-SP) pediu ao Ministério Público Federal a suspensão do Discord no Brasil, citando os casos recentes. A proposta, porém, enfrenta resistência, já que a plataforma também é usada por empresas, escolas e comunidades inofensivas.
Embora o Discord seja hoje a plataforma que mais preocupa autoridades, como afirma Tatiana Azevedo, o extremismo online não é exclusividade sua. “As plataformas se retroalimentam”, observa Ferreira. Redes como TikTok, YouTube e até o extinto Orkut já foram palcos para discursos de ódio. A diferença está na forma como o Discord, com sua privacidade e falta de moderação eficaz, amplifica esses comportamentos.
Para especialistas, combater o problema exige não apenas medidas tecnológicas, mas também educação digital e políticas públicas que abordem as raízes da radicalização. Enquanto isso, o Discord permanece no centro das atenções, desafiando autoridades a encontrar um equilíbrio entre liberdade de expressão e segurança online.