'Fui terapeuta de assassinos por 30 anos e concluí que ninguém nasce mau'

Em 20 de agosto de 1989, os irmãos Erik e Lyle Menendez chocaram  o mundo ao assassinar seus pais a tiros em sua mansão em Beverly Hills. Condenados à prisão perpétua, o caso deles voltou aos holofotes em 2024 com uma série e um documentário da Netflix, além de novas evidências que podem reabrir o julgamento. Em novembro, durante uma audiência por teleconferência, a tia dos irmãos implorou por sua libertação, afirmando: “É hora de eles irem para casa”. Mas quem são os irmãos Menendez? Monstros, como sugere a série da Netflix, ou seres humanos capazes de mudança?

Essa pergunta ecoa na mente de Gwen Adshead, psiquiatra forense com 30 anos de experiência em prisões e hospitais psiquiátricos de alta segurança, como Broadmoor, no Reino Unido. Em suas Reith Lectures na BBC, Adshead desafia a ideia de que criminosos violentos nascem “maus”. Baseada em décadas de conversas com assassinos, incluindo serial killers, ela defende que a maldade não é inata — é um estado mental moldado por circunstâncias, traumas e escolhas.

A Complexidade da Violência

Quando Adshead começou sua carreira, também acreditava que assassinos eram “diferentes” do resto da humanidade. Mas sua perspectiva mudou ao conhecer pacientes como Tony, um assassino em série que decapitou uma de suas vítimas. Em Broadmoor, Tony revelou um passado de abusos violentos na infância, sofridos pelas mãos do pai. Durante 18 meses de terapia, ele começou a expressar vulnerabilidade, algo que Adshead considera essencial para a mudança. “Se alguém consegue ser curioso sobre sua própria mente, há esperança de dar sentido ao caos”, explica.

A história de Tony não é única. Os irmãos Menendez, por exemplo, alegaram em seu julgamento terem sofrido abusos físicos e sexuais pelo pai — uma defesa que, embora contestada, destaca o papel do trauma na violência. Estudos mostram que 10 a 12% da população do Reino Unido sofreu traumas graves na infância, mas apenas uma fração comete crimes violentos. Então, o que diferencia os que agem com violência?

O “Cadeado da Bicicleta” da Violência

Adshead compara os fatores que levam à violência a um cadeado de bicicleta: vários elementos precisam se alinhar para que ele se abra. Entre os principais fatores de risco estão:

  • Ser jovem e homem, devido a maiores taxas de impulsividade e agressão.

  • Intoxicação por drogas ou álcool.

  • Histórico de conflitos familiares ou colapso relacional.

  • Violação prévia de leis.

  • Paranoia causada por doenças mentais (embora menos comum).

O fator mais crítico, porém, é o relacionamento com a vítima. A maioria dos homicídios ocorre entre pessoas que se conhecem — parceiros, familiares ou amigos. No Brasil, por exemplo, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que agressões contra mulheres aumentam 20% em dias de jogos de futebol, muitas vezes desencadeadas por conflitos domésticos.

O “último número” do cadeado pode ser algo trivial: um comentário, uma provocação ou até a derrota de um time. Quando o cadeado se abre, uma onda de emoções — raiva, ódio, medo — distorce a percepção e leva à violência.

Psicopatas e a Mente Violenta

A imagem do assassino psicopata, como Hannibal Lecter, é mais ficção do que realidade. Adshead explica que poucos criminosos são psicopatas, especialmente em casos de homicídios domésticos, como o dos Menendez. Psicopatas, segundo ela, raramente buscam ajuda, pois veem vulnerabilidade como humilhação. Tony, por exemplo, não se encaixava nesse perfil, já que pediu terapia.

A verdadeira raiz da violência, argumenta Adshead, está em estados mentais temporários, não em pessoas inerentemente “más”. “Não há evidências científicas de que alguém nasce mau”, afirma. Em vez disso, emoções como inveja, ganância ou raiva podem dominar qualquer pessoa sob as condições certas.

A Boa Notícia: A Violência Está Diminuindo

Apesar de casos chocantes, as taxas de homicídio caíram significativamente nas últimas duas décadas no Reino Unido, EUA e outros países. O professor Manuel Eisner, da Universidade de Cambridge, atribui isso a mudanças como:

  • Redução no consumo de álcool e drogas entre jovens.

  • Tecnologias de vigilância, como câmeras e celulares.

  • Normas culturais que rejeitam a violência contra mulheres e crianças.

Essas mudanças alteraram os “números” do cadeado, dificultando a explosão da violência.

Empatia Radical: O Caminho para a Mudança

Em 2004, Adshead trabalhou com Jack, um homem que matou a mãe durante um episódio de esquizofrenia paranoica. Em um grupo de terapia em Broadmoor, Jack expressou remorso: “Gostaria de pedir desculpas à minha mãe. Espero que ela entenda o quanto me arrependo”. Após um ano, sua saúde mental melhorou, e ele foi transferido para reabilitação. Casos como o de Jack mostram que, com terapia, muitos criminosos podem assumir responsabilidade e reduzir o risco de reincidência.

Adshead acredita que rotular criminosos como “monstros” apenas alimenta o medo e impede a prevenção. “Transformar pessoas em monstros é uma forma de lidar com a raiva, mas perdemos a chance de reduzir a violência”, diz. Sua abordagem, chamada de empatia radical, envolve ouvir e compreender até os piores criminosos para ajudá-los a mudar.

Os Irmãos Menendez: Monstros ou Vítimas?

Voltando aos Menendez, a revisão de seu caso levanta questões profundas. As novas evidências, ainda sob análise, podem lançar luz sobre os abusos que alegaram sofrer. Para Adshead, a questão não é se eles são “bons” ou “maus”, mas se suas mentes podem mudar. A tia dos irmãos acredita que sim. O tribunal decidirá se eles merecem uma segunda chance.

O trabalho de Adshead nos lembra que a violência não é o fim da história. Com empatia, curiosidade e responsabilidade, até as mentes mais sombrias podem encontrar um caminho para a redenção.

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Sobre o autor: Suleimane Wague
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